Prólogo

Self-Taugh, by Matías Sierra

Ah, memória... essa capacidade nossa de adquirir, armazenar e evocar informações no cérebro... embora para uns seja claro que é no cérebro o lugar de tais informações, para outros pode não ser, e por isso o menciono explicitamente, correndo o risco de parecer ter cometido um pleonasmo vicioso, mas a intenção é que fique claro de que a referência é à memória biológica, e não à memória artificial, que se fosse aquela também diria ser ela dotada da mesma qualidade de adquirir, armazenar e evocar informações, só que em maiores capacidades, e em meios externos ao homem - ao menos por enquanto, que do jeito que o homem vai a brincar de deus, sabe-se lá quando é que vão começar a misturar homem e máquina numa coisa só, se já não o fazem!

Vale notar que uma diferença entre memória biológica e memória artificial é que enquanto a memória biológica deteriora-se com a idade, a memória artificial não se deteriora, por assim dizer, mas se esgota em si mesma, devido à incapacidade de armazenamento de novas informações - incapacidade física. Outra diferença é que na memória biológica ocorre um processo que conecta vários pedaços de memórias, a fim de gerar novos conhecimentos, novas idéias, o que nos ajuda a tomar decisões e a modelar uma percepção de mundo a fim de melhor lidar com ele, de acordo com nossos planos e desejos. Já na memória artificial, tal processo é inexistente, sendo ela incapaz de formar o pensamento, e seria prudente aqui dizer como já dito anteriormente, que assim o é ao menos por enquanto, que do jeito que as tecnologias andam, isso pode já estar a mudar enquanto ainda escrevo estas linhas!

Mas estava eu a justificar o título, se é que títulos precisam ser justificados. Se precisassem, diria que são possíveis aquelas memórias que conseguimos resgatar, porque as que não conseguimos, devem ter lá seus motivos para que se esconderem no profundo e turbulento mar que é a nossa mente, e ainda que se tente resgatá-las utilizando técnicas como a regressão, a hipnose e a meditação, raramente sucedemos, e com o tempo acabamos até por esquecer que haviam memórias não-resgatadas... e isso se dá, dizem os estudiosos dessas ciências, porque certas memórias possuem uma auto-consciência de se lembradas, acabariam por magoar demais da conta, muito mais do que as mágoas da qula já estão acostumados os homens, e assim ficam se escondendo, evitando até mesmo serem entrelembradas, aquela vaga lembrança que vez ou outra nos visita de passagem, mas não estas memórias que apenas querem ser esquecidas, como sabemos que o caminho mais curto para o esquecimento é o abandono e a indiferença, lá ficam. Mas há outro tipo de memória, daquelase é destas que aqui se trata, aquelas que demandam resgate, exigem atenção, e quando o fazem, fazem com a urgência dos desesperados, dos ressucitados, dos que se agarram a qualquer fio que lhes proporcione um pingo de esperança, e se erguem, a cabeça afora daquele turbilhão de pensamentos!

E cada memória tem seu próprio tempo de ressurgência, já que hibernam cada qual em seu próprio inverno... Estas aqui, hibernaram por mais de 20 anos, e de repente estão a baterem-me à porta da alma, a lembrarem-me das urgências com que precisam sair, vir à tona, fazerem-se ouvir! Muitas destas memórias foram tomadas em encontros informais, aos domingos, entre aperitivos que antecediam o almoço lá na casa de meus pais... e se bem me lembro, entre o final de 1999 e meados de 2000. Mãe também testemunhou. Minha urgência agora é dar voz a isso tudo.